Inimigo meu: não seja o seu próprio não

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– Talvez aquela frase fique melhor no final – pensava em voz alta, enquanto terminava de fazer a barba, de frente para espelho.
– E quem se importa? – perguntou, de forma irônica, o meu reflexo.

Fiquei olhando para ele, ou melhor para mim, que me encarava de forma desafiadora.

– Eu me importo! – respondi mesmo assim.
– O último vídeo que você gravou mal teve dez visualizações – disse sorrindo.
– Foi apenas o primeiro.
– E demorou quase duas horas para aproveitar apenas dois minutos.
– Ainda estou pegando o jeito.
– Não me faça gargalhar, mas jeito é tudo o que você não tem.
– Quem te disse?
– É só olhar a quantidade de visualizações.
– Mas foi só o primeiro.
– Na boa, quem você quer enganar? – perguntou o meu reflexo, agora num tom de voz grave e incisivo.
– Ninguém.
– Então por que você vai insistir com isso?
– Porque é o que gosto de fazer.
– Gravar vídeos? Não seja ridículo!
– O vídeo é só o meio, pois o que gosto de fazer é ajudar as pessoas.
– Mas você não sabe lá muita coisa sobre como ajudar.
– Vou ajudar com o pouco que sei.
– Que é nada!
– Mas é uma sementinha que estou plantando.
– E desde quando as mangueiras começaram a nascer no deserto?
– E quem disse que estou plantando no deserto?
– Se dez visualizações não são um deserto, então nem quero imaginar o que seja – respondeu caindo na gargalhada.
– Estou no início e se apenas uma pessoa se sentir grata por causa disto, já terá valido à pena.
– Não sei onde você está com a cabeça, mas essa trabalheira toda para ajudar uma só pessoa? Fala sério!
– Tudo sempre começa com uma pessoa, né?
– Acho que você surtou de vez.
– Por quê?
– Já viu como é a loucura do seu dia a dia e a quantidade de coisas que você já tem para fazer? 
– Sim.
– E aí?
– Já te ocorreu que talvez 90% dessa quantidade de coisas que tenho para fazer não me dão satisfação nenhuma?
– Mas te dá dinheiro e o dinheiro pode comprar qualquer coisa que te satisfaça!
– E quem disse que no futuro não conseguirei ganhar algum dinheiro a partir disto?
– Com tanta gente que fala melhor, que é mais bonita e que sabe muito mais do que você por aí? Sem chance.
– Mas ninguém faz da forma como estou fazendo.
– E é por isso que ninguém te deu a mínima.
– Mas dará.
– Ah, sim, talvez, quem sabe, um dia, blábláblá. Na boa, vai cuidar da tua família e do teu trabalho, e não arruma mais ideia que possa comprometer isso. Estamos bem assim, certo?
– Isso não compromete.
– Deixa de ser cabeça dura e não troca o certo pelo duvidoso.
– E quem disse que estou trocando? Estou apenas deixando de ser egoísta para compartilhar o que sei com quem está precisando.
– Al, claro, e pelo visto ninguém está precisando dessa ajuda, hein?
– É que primeiro as pessoas precisam saber que estamos disponíveis.
– Sim, e aí quando começarem a te requisitar, como é que você dará conta com essa rotina maluca atual?
– Logo se vê. O que importa é que pela primeira vez estou seguindo o meu coração e isto me trouxe uma satisfação que há muito tempo não sentia.
– Acho que já falamos várias vezes que a satisfação não enche a barriga de ninguém, né? 
– Mas ela abre portas que nos levam a novos caminhos.
– Você não precisa disso. Foca no caminho que já está dando certo.
– Mas isto também poderá dar certo.
– Tá, poderá, mas para que correr o risco de virar meme e motivo de chacota a essa altura do campeonato?
– Por que chacota se só estou falando sobre o que sei e acredito? O que está lá no vídeo é o mesmo eu da vida real.
– Mas agora é diferente, além do que você não é isso tudo que está imaginando que é e você sabe disso.
– Não?
– Nunca foi. E todos nós sabemos que essa não é a sua praia.
– Mas só há um jeito de ter certeza: entrando no mar.
– E se o mar te engolir?
– Engoliu, né?
– Para de ser teimoso. De um jeito ou de outro, a verdade virá à tona e você será desmascarado, o que será ainda pior.
– Desmascarado por ser quem eu sou e falar o que sei?
– Na boa, fecha essa porta antes que todos descubram que você é apenas mais um impostor.

Desliguei o barbeador e o coloquei em cima da pia antes de encarar olhos nos olhos o meu reflexo.

– Você nunca acreditou em mim, não é mesmo?
– Meu papel nunca foi acreditar, mas sim te proteger.
– Proteger do quê?
– De você mesmo.
– Proteger não é sufocar, nem esconder!
– Olha, quem avisa amigo é…
– Não, você não é meu amigo. Nunca foi!
– Nunca? Não seja ingrato! Por minha causa é que você chegou até aqui!
– Por sua causa não, mas sim apesar de você!
– Acho que é melhor, então, encerrarmos por aqui porque você perdeu a noção e não sabe mais o que está falando – disse em tom irônico.
– Sei sim e nunca tive tanta certeza em minha vida: você é que é o verdadeiro impostor! – respondi em tom furioso colocando o dedo em riste na cara do meu reflexo no espelho.

Respirei fundo, liguei a torneira, enxaguei o rosto pela última vez e, assim que terminei de secá-lo com a toalha, olhei novamente para o espelho.

Lá estava eu: sorridente e confiante.

Apenas eu.

Melhor assim. 

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Português que nasceu em Moçambique, foi criado no Brasil, empreendeu em Portugal e agora está de volta ao Brasil para continuar ajudando as pessoas a transformarem o conhecimento em um negócio/produto de valor.

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