Depois de aproveitar a quarentena para reorganizarmos a casa, eis que encontro novamente um dos projetos que mais tenho orgulho de ter feito.
E que nasceu por acaso, a partir de um estímulo externo como tantos outros que “nos encontram” por aí, mas que resolvi encarar de uma forma criativa.
Há 2 anos escrevi e desenhei uma série de 10 cartas para a minha filha, que à época tinha 4 anos.
Não era isso que tinha imaginado e também não foi fácil, conforme você verá neste artigo com as várias “surpresas” que apareceram conforme se ia avançando, mas foi bastante prazeroso.
Muito mais do que um gesto de amor e um grande exercício de criatividade, este projeto também foi mais uma prova de que o momento certo é sempre o quando você resolve executá-lo.
E que o resultado final dificilmente será igual à sua ideia inicial, mas quando se coloca uma meta, um prazo e se executa com consistência, ele ganhará vida.
O problema
– Papai, por quê não há cartas para mim?
Depois de assistir ao primeiro filme do Harry Potter, em que há aquelas cenas em que dezenas de cartas começam a invadir a casa do tio dele, minha filha (na época com 4 anos) passou a ir animada todos os dias à caixa dos correios e voltava entristecida repetindo a mesma pergunta.
Era muito fácil ter dado uma daquelas respostas evasivas padrões que todo pai/mãe guarda na manga, mas de alguma forma aquilo me tocou e por isso não quis colocar logo um ponto final para resolver a situação.
Até que um dia, após ajudá-la a “fazer a viagem”, que era levar algumas bonecas com as quais ela brincava na sala de volta para o quarto (quem nunca?), recebo uma mensagem da minha sogra sobre um livro que falava de cartas e bonecas – e, então, a ficha caiu.
A ideia
E se uma dessas bonecas partisse para uma viagem cheia de desafios e escrevesse contando essa aventura?
Escolhi uma boneca que ela gostava muito, chamada Mariana, e inventei a estória de que ela, por ser muito amada, havia sido convocada pela Rainha das Bonecas para ir até o Reino Encantado das Bonecas para participar de uma missão muito importante.
A Rainha era a responsável por cuidar do equilíbrio de amor no mundo e, assim, em cada casa em que houvesse uma boneca muito amada, ela fazia a convocação para que essa boneca fosse até o Reino para aprender a transmitir esse amor, sendo então enviada de volta para uma nova casa para fazer a alegria de uma menina que não tivesse bonecas.
Desta forma, a grande aventura da boneca Mariana terminaria também servindo como pano de fundo para estimular ainda mais a doação das bonecas, que é uma prática que sempre reforçamos bastante em casa.
Mãos à obra
Quando disse para a minha esposa que iria começar a escrever as cartinhas, e até por conta de outras atividades em que estávamos envolvidos, ela me desafiou a usar no máximo 1 hora por semana para escrever cada uma delas.
Desafio aceito, mas de quantas cartas/semanas estávamos falando?
Não tinha noção e nem sabia direito ainda como seria esse desenrolar da estória.
Só sabia que estávamos numa quinta-feira e já queria entregar essa primeira cartinha no dia seguinte, sexta-feira.
Como estava bastante empolgado e inspirado, a primeira cartinha saiu rápido em duas folhas e na forma de um grande poema.
Feliz da vida corri para imprimi-la e então os “problemas” começaram: se é uma carta, cadê o envelope?
Pois é, como não tinha pensado nisso?
Corri para a outra loja para comprar os envelopes, mas não havia nada que cativasse uma menina de 4 anos.
Indicaram uma outra loja, mas também não havia nada de jeito.
Enquanto voltava desanimado para casa, uma outra ideia surgiu: se o que mais havia no quarto da minha filha era lápis de cor e giz de cera coloridos, então personalizaria cada envelope com um desenho feito a mão.
Afinal, voltar a desenhar para brincar com ela era um desses hobbies que a paternidade havia trazido de volta à tona.
Mesmo que demorasse um pouquinho mais, achei que ela ficaria feliz (como ficou!) em receber um envelope com um desenho diferente e que desse uma pista do que seria o conteúdo da cartinha.
Esperei ela dormir e lá fui fazer o desenho no primeiro envelope.
Bastante empolgado, peguei a cartinha, olhei para o envelope colorido e percebi mais um “problema”: todos os livros para crianças dessa idade possuem desenhos em todas as folhas.
O envelope também possuía um desenho, mas na cartinha não havia nenhum.
E agora?
Será que ela ficaria animada com essas aventuras sem nenhum desenho para ilustrá-los?
E a boneca?
Era uma carta “dela”, mas também não havia nenhuma foto ou desenho dela na cartinha!
Fui dormir com a cabeça fervilhando e, quando acordei, já tinha decidido que precisava tirar uma foto da boneca (e imprimir!) para incluí-la na cartinha, mas que nesta primeira não iria fazer nenhum outro desenho, até porque não teria mais tempo, e precisava deixá-la na caixa dos correios antes de pegá-la na escola.
A entrega
Tudo pronto, cartinha fechada e deixada na caixa dos correios, lá fomos pegar a minha filha na escola, mas o astral dela não estava muito bom – um misto de cansaço com as atividades da sexta-feira e também de um pouco de birra porque queria ter continuado a brincar por mais tempo na escola.
Mesmo assim, tão logo chegamos em casa, ela já pediu a chave da caixa dos correios e disparou como fazia todos os dias.
Quando abriu a caixa, deu um grito de surpresa e um sorriso imediatamente tomou conta do seu rosto.
Sua cabeça deu um nó ao reconhecer o seu nome escrito no envelope e admirou-se com o desenho colorido, que era bem diferente dos envelopes que costumavam chegar para nós.
Começou a fazer um batalhão de perguntas e logo percebi que essas cartinhas não seriam lidas na “hora da estória” antes de dormir, pois a sua ansiedade não deixaria, mas tudo bem.
Mal entramos em casa e ela foi mais rápida rasgando o envelope, tomando um susto quando viu a foto da sua boneca na carta.
Li a cartinha e ela ouviu toda a estória atentamente, porém com uma leve tensão no rosto, e ficou aborrecida e muito encucada com o fato da boneca ter escrito a cartinha e ido embora (mas como assim, papai?), pois ver a foto despertou-lhe a vontade de brincar com ela mais uma vez.
Então pediu para a mãe ler novamente a cartinha.
Agora, passado o susto de ter entendido e assimilado todo o conteúdo, mas não a irritação por não mais encontrar a boneca no seu quarto, ela parecia degustar cada palavra ouvida como que se tivesse percebido que tudo era uma grande brincadeira para fazê-la feliz, mas não disse nada.
Apenas abriu um sorriso maroto, olhou fundo nos meus olhos e fez uma última pergunta:
– Será que na próxima cartinha terá mais desenhos?
“Sim”, respondi mentalmente, começando a imaginar a trabalheira que daria para escrever E desenhar cada cartinha a partir de agora – e que não demoraria mais apenas uma hora para serem feitas, mas tudo bem.
Afinal, a minha limitação como desenhista não poderia travar a minha criatividade como escritor, nem a expectativa da minha “filha-cliente” e muito menos a “produção” que agora tinha que dar conta de fazer, pois se demorasse muito tempo para entregar a próxima cartinha talvez ela se desinteressasse por essa estória.
Retribui também com um sorriso e disse: “não sei, vamos aguardar a próxima cartinha”!
As Cartas da Boneca
Desta forma nasceu esta série de 10 cartinhas, que chamei de “As Cartas da Boneca”, e que foi toda escrita e desenhada por mim entre julho e agosto de 2018.
As datas que constam nas cartinhas não foram as datas em que elas foram escritas e nem entregues.
Explico: a primeira carta escrevi em 5/07 mas coloquei a data de 1/07/08, pois como a entrega seria em 6/07/18, era justamente para se ter um “tempo plausível” entre a boneca escrevê-la, enviá-la e chegar até a nossa caixa de correios.
Vale destacar também que somente após a última cartinha é que a minha filha teve a certeza de que a boneca não voltaria mais, pois precisaria ir cumprir a sua missão que era alegrar uma outra menina em uma nova casa.
E ela não ficou triste – pelo contrário!
Ainda mais quando abriu a caixa que vinha junto com esta carta e viu que lá dentro havia um presente da própria Rainha: o Troféu do Amor.
Este era o reconhecimento máximo que uma menina ganhava por tratar bem as suas bonecas e também por contribuir fazendo a doação de algumas delas regularmente.
Ela foi ao delírio e eu fui às lágrimas, fechando o projeto com chave de ouro e me deixando emocionado até agora com o quanto ela gostou e assimilou cada detalhe.
Afinal, se fosse apenas pela razão, talvez nada disso ainda tivesse acontecido, pois só de pensar na trabalheira que daria desenhar e escrever isso tudo, ainda estaria esperando o tal “momento certo” para começar.
Felizmente, para mim e para a Sophia, o coração falou mais alto e apenas fui lá e fiz.
E não parei.
Quando as coisas são feitas com amor…
… superamos quaisquer desafios.
E nem nos importamos mais com o tempo…
… porque ele sempre passa voando …
… enquanto curtimos muito!
Moral da estória e da história
- De grão em grão a galinha enche o papo
Se tivesse suspeitado que teria que fazer isso tudo, ainda mais desenhando todas as folhas, possivelmente estaria até hoje aguardando o “momento certo” para começar, que é próximo do nunca.
O fato de não ter a visibilidade completa do que seria e focar os esforços apenas para fazer a primeira carta, para só então pensar em como seria a segunda carta, foi o fator crítico de sucesso para conseguir fazer a entrega do todo.
Afinal, quando se divide um projeto em pequenas partes, ganha-se três vezes: na realização por já ter feito e entregue algo, a motivação para continuar fazendo e o aprendizado para fazer o próximo melhor.
Ah, e é claro:
- Leia sempre para a sua filha(o) e estimule a doação de bonecas e brinquedos
E, se ficou empolgado por conta deste meu relato, escreva também uma cartinha (não se limite por conta de desenhos ou da quantidade) e prepare bem o seu coração para quando ela ficar maravilhada em ter uma carta na caixa de correios com uma estória/mensagem só para ela.
Ao final, além de uma recordação para a vida inteira, você também constatará que a felicidade dela em receber a cartinha e ouvir a SUA estória/mensagem será diretamente proporcional a cada segundo investido para fazer isso acontecer.
E isso não tem preço, né? 😉
Em tempo I: No dia do meu aniversário (30 de agosto), que por coincidência foi a data escrita na última cartinha, ganhei da minha esposa o livro Kafka e a boneca viajantede Jordi Sierra I Fabra, que foi o tal livro indicado pela minha sogra, e que foi um dos melhores e mais arrebatadores livros que li na vida. O autor recriou um caso acontecido com o grande escritor Kafka (clique aqui para mais detalhes), que com pena de uma menina que estava triste no parquinho porque havia perdido sua boneca, inventou que era um “carteiro de bonecas” e todo dia lhe trazia uma cartinha enviada pela “boneca viajante”. Lindo e emocionante até dizer chega!
Em tempo II: Com medo de perder ou rasgar alguma cartinha, na época comecei a aprender a editar videos e até coloquei no ar os vídeos das primeiras cartas na íntegra (narrados pela minha esposa), mas esse trabalho ainda não terminou.
Clique na imagem para ver os que já estão disponíveis (e mostre também pra filha, sobrinha, afilhada, etc…) e em breve prometo incluir o restante! 😉
Em tempo III: Quando vir o primeiro vídeo, não estranhe o desenho na primeira folha, pois ele foi o único feito depois que entreguei todas as cartas.
Em tempo IV: A grande maioria dos desenhos foram criados por mim, alguns foram adaptados a partir de fotos disponíveis na internet e a Ratinha (capitã do caravela) foi copiada de um desenho que um amigo me passou (não sei quem desenhou).
Em tempo V: aos poucos sigo avançando no livro com a estória completa deste Reino Encantado das Bonecas para ela ler quando for maior, mas se você conhece alguém ou trabalha em alguma editora e já gostou deste material, mande-me uma mensagem pois adoraria vê-lo publicado! 😉
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