A imaginação, o medo e o paradoxo da certeza

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O Murilo Gun já dizia que o João de Barro constrói casas da mesma forma há mais de 10 mil anos, enquanto que o ser humano, justamente por conseguir imaginar, pode inventar um modelo diferente a cada hora.

Lembrei disso – o uso da imaginação – ao receber a minha cópia autografada do livro “Barulho – 30 anos” do incansável André Barcinski, e você já já vai entender não só porquê, mas também onde quero chegar.

Corria o ano de 1993, tinha voltado de uma viagem para a Europa cheio de CDs na mala (sim, com os recém-lançados do Nirvana, Rage Against the Machine, Smashing Pumpkins, etc) e iniciava meus estudos de administração na UFF.

O mundo da música havia sido chacoalhado com o avanço dos CDs (compact discs) sobre os discos de vinil e as fitas-cassete, sem fazer ideia de que o “pior” – a internet – ainda estava por vir.

Naquele ano comprei o livro do Barcinski (e emprestaria para nunca mais ver), que acabou inclusive ganhando o prêmio Jabuti, e que vinha recheado de entrevistas com a efervescente cena do rock-punk-grunge-e-afins americana.

Só havia um problema ali: a maioria das bandas sequer tinha LPs, K7s ou mesmo CDs lançados no Brasil.

Então, ler um livro ou uma revista sobre música (e ainda havia muitas) daquela época para trás era basicamente um exercício de imaginação.

Você lia sobre o Ministry, mas ninguém conhecia, não tocava no rádio nem na tv, não tinha nas lojas e, então, ficávamos lá imaginando o que seria o tal desse som industrial-punk-metal que eles faziam.

Também não existia o Google para você pesquisar mais sobre quem eram esses caras, nem o Youtube para ver alguma imagem de um show ou um videoclipe de uma música, muito menos o Spotify para colocar para tocar em dois cliques as músicas citadas na entrevista.

Praticamente tudo era imaginação e você imaginava baseado nas referências que já tinha.

Como quando descobri que o clássico “Beat It” do Michael Jackson, com aquele riff de guitarra distorcida, foi feito pelo Eddie Van Halen e, então, ficava imaginando se as músicas da banda Van Halen eram todas nesse estilo ou como era o som das bandas que se diziam inspiradas por eles.

E, o que era ainda pior, você tinha que “apostar” seu dinheiro nisso.

Como o primeiro LP que comprei na vida, o “Somewhete in time” do Iron Maiden.

Acabei comprando-o porque alguém me disse que o show no Rock In Rio (o primeiro) tinha sido ótimo, que a música deles era a “mais pesada” do festival e, é claro, pela capa, pois achei a mais incrível de todas as bandas que estavam na seção de rock da loja.

Felizmente gostei das músicas, mas poderia ter odiado e jogado o dinheiro fora, como também acabou acontecendo algumas outras vezes.

Hoje isso é impensável, pois em dois cliques você já está dando o play em qualquer música de qualquer banda e, em mais 30 segundos, já sabe se vale a pena ou não ouvir mais músicas dela.

O que antes levava quase um ano – entre ouvir falar sobre alguma banda até conseguir ouvir alguma música dela -, hoje não demora 1 minuto.

E isso é ótimo, né?

Pois é.

O avanço da internet facilitou sobremaneira a vida dos curiosos (como eu), mas ao mesmo tempo está atropelando a imaginação.

Hoje, por exemplo, você não consegue imaginar qualquer coisa que seja por mais de 10 segundos, que logo em seguida através do google você já irá ter praticamente todos os detalhes, imagens e vídeos a respeito.

Aquele espaço gigantesco que havia para imaginação brincar entre a dúvida e a certeza, desapareceu – em quase todas as áreas.

E isso é um problema, pois é justamente neste espaço que imaginamos cenários através do E SE?, e que é primordial para criar as inovações que irão mudar as vidas e mover o mundo.

Mas se a certeza já está “disponível”, então por que perder tempo imaginando?

O pior é que o nosso cérebro está começando a ficar cada vez mais não só preguiçoso, como também viciado em… ter certeza.

E isto gera um triste paradoxo, pois mesmo o que é incerteza logo vira certeza como reflexo automático aos estímulos do exterior que recebemos e que são impulsionados internamente pelo… medo.

Afinal, se não estamos imaginando nem pensando a respeito, é óbvio que nada faremos porque o medo que habita em nós, e que está lá sempre de prontidão, não deixará.

E, mesmo que pareça fácil, afinal está tudo aí à disposição com as bençãos da onipresente Inteligência Artificial, paralisamos.

Olhamos para as incertezas e logo transformamo-as em certezas (“porque o medo tem razão”), e inconscientemente voltamos para a nossa vida como ela é.

Voltamos para a internet.

Só que a nossa imaginação não está lá, assim como a vida que poderia ter sido também não.

Entretanto, as várias espécies de João de Barro, ah, elas com certeza poderão ser encontradas por lá, sim.

Mas, cá entre nós, é isso o que você realmente está buscando?

Português que nasceu em Moçambique, foi criado no Brasil, empreendeu em Portugal e agora está de volta ao Brasil para continuar ajudando as pessoas a transformarem o conhecimento em um negócio/produto de valor.

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