Reinventar-se nem sempre é preciso, às vezes basta só ir até o final

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Sempre que a vida nos dá um nocaute e beijamos a lona, a primeira coisa que fazemos é duvidar de todas as nossas capacidades.

A segunda coisa é tentar, de alguma forma, reinventar-se mudando completamente a rota e os objetivos que vínhamos perseguindo.

Entretanto, mudanças radicais nem sempre são necessárias.

Às vezes é só um (enorme) buraco na estrada da vida que furou um (ou mais) pneu(s) do nosso carro.

A solução, então, é fazer alguns ajustes (que nunca são fáceis) e seguir a viagem, ao invés de abandonar o veículo ali mesmo, virar as costas e pedir carona para embarcar em outra aventura por uma outra estrada afora.

Mas naquela hora, ali, sozinhos no acostamento, com o sol fazendo o nosso cérebro derreter, duvidamos de tudo, de todos e, principalmente, de nós mesmos.

Nossa visão fica turva, pois o cérebro entra em atrito com o coração, a razão briga com a emoção e, infelizmente, a resposta certa só saberemos tempos depois, quando chegarmos em algum destino e olharmos para trás, muitas vezes rindo disto tudo, mas às vezes também com uma ponta de arrependimento.

Curiosamente, esse seguir ou não seguir em frente, se se reinventar é ou não preciso, era a conversa que tinha acabado de ter com um mentorado, quando avaliávamos se realmente todas as possibilidades já haviam sido exploradas.

E, assim que terminamos a conversa, rumei para a biblioteca e lá estava a sombra imortal do mestre Nelson Rodrigues, um dos meus escritores favoritos de todos os tempos para sempre.

Deus está nas coincidências

Era o que ele dizia – e estava mesmo, mas ainda não sabia.

Devolvi os livros que estavam comigo, peguei mais cinco novos, sendo que dois foram estes aqui:

Neste exato mometo você deve estar se sentindo mais perdido que cego em tiroteio, tentando entender o que Nelson Rodrigues, o Jayme Cortez e o Mauricio de Sousa tem a ver com o que estávamos conversando até agora.

E a resposta é: tudo.

Senta e pega um café, que lá vem uma ótima história e tudo fará sentido.

Escolhi o livro de terror do Jayme para começar a ler e, bastou virar uma página, para me deparar com este prefácio maravilhoso:

Reconheceu a fera?

Pois é.

O jovem Mauricio, que começava a publicar suas tirinhas infantis no que se tornaria a Folha de São Paulo (e ganhava pouco mais de um salário mínimo com isso), cogitou entrar na onda do terror, que naquela época fazia bastante sucesso e vendia horrores (nos dois sentidos, literalmente).

Pegou o papel e caneta, bolou uma história de terror e foi tentar a sorte numa das editoras para aumentar os seus rendimentos – quem nunca, né?

Foi recebido pelo Jayme Cortez, português que tinha imigrado para o Brasil para também tentar a sorte, e que já estava se consolidando no mercado editorial.

Entretanto, ao contrário dos outros editores que pegavam seus desenhos e lhe diziam que não havia futuro para desenhistas no Brasil, Jayme disse-lhe uma das frases mais antológicas que já li – e que acabaria acertando o rumo daquele garoto sonhador:

– Se você faz aquelas coisas tão bonitas e engraçadas no jornal (os desenhos do Bidu), por que me traz essa merda aqui? Faça histórias do Bidu que nós publicamos.

Ali foi uma virada de chave importante na vida do Mauricio, pois além de deixar claro que o caminho do terror não o levaria a lugar algum, foi a primeira vez que alguém numa editora lhe disse que topava publicar uma revista só dele com o que ele já estava fazendo de melhor.

A ficha caiu e seus olhos brilharam.

E o Jayme não só disse, como também foi a sua editora que publicou as primeiras revistas só com personagens do Mauricio – o próprio Bidu – no Brasil.

Ou seja, ele atirou no que viu (surfar na onda do terror) e acertou no que não viu (uma revista exclusiva do Bidu).

Desta forma, ganhou a confiança necessária para ter certeza que estava no caminho certo e pisou fundo no acelerador.

Porém, e sempre há um porém,

No meio do caminho havia uma… cratera!

Gigantesca, por sinal.

E ele bateu forte, perdeu a direção, capotou e por muito pouco o seu lindo sonho de viver dos seus desenhos quase teve perda total.

Quase.

– Por que?

Porque depois de um tempo as revistas foram descontinuadas, mas esse não foi o grande problema.

Ele tinha se tornado presidente da primeira associação de desenhistas do Brasil, começando a lutar para regulamentar uma profissão que, até então, ainda nem profissão era.

E, em dado momento, o pessoal do jornal ficou bem incomodado com esta situação e o colocaram contra a parede: a associação ou o trabalho no jornal.

E ele escolheu a associação.

Perdeu o emprego, mas não só: seu nome entrou numa lista negra que acabou lhe fechando as portas de todos os jornais da capital paulista.

Todos.

Sem trabalho na cidade grande e com três crianças pequenas para criar, o jovem retornou para o interior e foi pensar na vida, com aquela mesma conversa que abrimos este artigo.

Reinventar-se, esquecer esse negócio de desenhos e correr atrás de um “trabalho de verdade” que pagasse as contas, mudar de caminho ou apenas tentar todas as possibilidades?

Mas ainda havia possibilidades?

Pensou no pai, que tinha uma atitude que profissionalmente o incomodava, pois era mestre em começar vários projetos, mas que não insistia em nenhum até o final – parava sempre em alguma dificuldade.

Mauricio, então, resolveu que não e decidiu que iria até o final.

E foi.

Arregaçou as mangas, pegou a pastinha, juntou seus melhores desenhos e foi, tal e qual um caixeiro viajante, de cidadezinha em cidadezinha vender os desenhos que já havia feito para a Folha para os jornais locais e as igrejas, que também tinham periódicos ilustrados.

E deu certo.

Como no interior ninguém parecia se importar com a tal da “lista negra” da capital, essa rotina cansativa de ir e vir para todas as cidades próximas que o (contado) dinheiro conseguia pagar, e sem parar de produzir novos desenhos quando chegava em casa, conseguiu fechar as primeiras vendas.

O carro, enfim, estava de volta à estrada.

Empolgado, deu mais um passo adiante: criou e enviou (pelos correios) panfletos com uma oferta das suas tirinhas para que os jornais de outras cidades em outros Estados comprassem e passassem a (re)publicá-lo

E essa estratégia não só deu muito certo, como também deu muito trabalho não só para criar novos personagens (a Mônica, inclusive) sem parar de criar novas histórias, como também para administrar esses envios semanais para os mais de duzentos jornais e igrejas Brasil afora, que agora já eram seus clientes.

Desta forma ele conseguiu virar o jogo, transformando-se na própria empresa, que agora vendia as suas produções para os veículos da imprensa que quisessem comprar.

E, de tirinha em tirinha e de jornal em jornal, enfim, a vida começou a melhorar.

Até que um dia um novo grupo comprou a Folha, a tal da lista negra da capital foi sepultada, ele foi chamado de volta para trabalhar lá, o jornal lançou um suplemento infantil e as suas histórias, então, começaram a fazer sucesso de verdade.

E o resto é História com um H gigantesco, mas que teve o ponto da virada justamente quando o carro estava lá, capotado, no meio daquela cratera e ele resolveu consertá-lo, botá-lo de volta na estrada e continuar com o seu sonho de viver dos desenhos.

Ainda havia possibilidades, mas ele só as enxergou porque resolveu testá-las até o final – mesmo com todas as razões do mundo (dívidas, inclusive) para desistir e ir fazer outra coisa.

Ao contrário do pai, ele sim foi até o final.

E que final espetacular (que felizmente ainda não acabou), né?

Pois é, agora numa escala Mauricio de Sousa, pensa aí (e pode responder também, se já souber a resposta):

O quanto realmente estamos dispostos para correr atrás e explorar todas as possibilidades para que os nossos sonhos se transformem em realidade?

Afinal, reinventar-se nem sempre é preciso – às vezes basta só ir até o final. 😉

Obs. As recomendações não poderiam ser outras: leia a biografia do Mauricio de Souza e cuide para que as crianças à sua volta estejam sempre com uma revista da Turma da Mônica em mãos.

Português que nasceu em Moçambique, foi criado no Brasil, empreendeu em Portugal e agora está de volta ao Brasil para continuar ajudando as pessoas a transformarem o conhecimento em um negócio/produto de valor.

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